Impacto Psicológico

Drª Filipa Machado Vaz – Psicóloga Clínica

“Quem explica aos familiares que o doente com lesão traumática ficou diferente daquilo que era antes do acidente, precisamente por ter uma lesão cerebral? Como pode uma mulher ou um marido lidar coma a labilidade das emoções ou com a agressividade próprias destes doentes, que são mais difíceis de aceitar no dia-adiado que nos defeitos visíveis?”

Castro Caldas, A. (1994). Ser traumatizado de Crânio em Portugal

O TCE é a primeira causa de morte antes dos 40 anos de idade, sendo que os acidentes rodoviários são responsáveis por quase metade dos casos. As vítimas são frequentemente, jovens com idade inferior aos 25 anos (Linhares, 2009).

Estudos recentes demonstram uma incidência do TCE de aproximadamente, 103/100000 habitantes nos EUA e de 235/100000 na União Europeia. No que diz respeito à taxa de mortalidade, esta varia globalmente entre os 15 e os 24.6/100000 (Oliveira, Lavrador, Santos & Antunes, 2012).

No conjunto dos fatores de risco para a ocorrência de um TCE ligeiro, o mais significativo é ser do sexo masculino e ter idades compreendidas entre os 15 e 24 anos. Verifica-se que os indivíduos do sexo masculino sofrem TCE ligeiro duas a três vezes mais do que indivíduos do sexo feminino, sendo que os acidentes rodoviários, agressões e ferimentos de bala, encontram-se como os maiores contribuintes para a grande discrepância entre sexos. Outros fatores de risco reconhecidos incluem o consumo de álcool, abuso de outras substâncias, níveis socioeconómicos baixos, viver em áreas urbanas congestionadas, história de dificuldades conjugais, dificuldades de aprendizagem, TCE prévio e existência de perturbações psiquiátricas (Moore, Terryberry-Spohr & Hope, 2006).

Os resultados demonstraram que 49% dos pacientes com TCE moderado a grave apresentaram evidência de doença psiquiátrica, um ano após a sua lesão. Estes autores concluíram ainda que, os indivíduos que apresentavam história prévia de doença psiquiátrica manifestaram maior incidência destas perturbações após a lesão e que o risco de doença psiquiátrica é maior nos primeiros seis a doze meses após a lesão.

Os sintomas mais proeminentes da perturbação pós-stress traumático após o TCE são os pesadelos e a elevada excitabilidade (Ohry et al. 1996 cit in. Moore, Terryberry-Spohr & Hope, 2006). Esta apresentação de sintomas está relacionada com a recordação do evento traumático.

Nas crianças e adolescentes, as consequências do TCE são semelhantes às experienciadas por adultos. Crianças e adolescentes que sobrevivem a um TCE apresentam um risco significativo para o desenvolvimento de problemas de saúde, psicossociais, comportamentais e funcionais académicos (Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009). Alguns dos problemas relatados com maior frequência são as dificuldades de atenção e memória, velocidade de processamento de informação e de expressão, o funcionamento sensório-motor, raciocínio e competências para resolução de problemas (Barker-Collo, 2007, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009). Tal como nos adultos com TCE, outra consequência significativa são os problemas de comportamento após TCE (Fletcher et al., 1990, Hawley, 2004, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009).

Após a fase aguda do TCE, os doentes que foram vitimas desta patologia podem apresentar várias alterações a nivel psicológico, nomeadamente:

Alterações cognitivas

As alterações cognitivas podem ser confirmadas através da realização de uma avaliação neuropsicológica. Frequentemente após a ocorrência de um TCE, os indivíduos apresentam alterações cognitivas sobretudo nos domínios da memória, atenção, concentração, coordenação motora fina e da linguagem.

As perturbações da memória são muito frequentes nos TCE, tal é consequência do facto de a memória resultar de um processo que depende da integração de diversos aspectos da função cerebral, implicando mecanismos de recepção intactos, atenção adequada e capacidade de transferência de dados inalterada. Apesar de se verificar uma melhoria notória no primeiro ano após o TCE, em especial no âmbito linguagem, os défices de memória tendem a persistir (Junqué, 2001 cf. Junqué, 1984, 1986).

Alterações comportamentais

As alterações comportamentais caracterizam-se pela perda de autoconfiança, por comportamentos desadequados, motivação diminuída, irritabilidade e agressão. Contudo, a sintomatologia mais frequentemente referida pelos familiares de indivíduos que sofreram um TCE, é a sintomatologia derivada de sequelas na área frontal. Estas alterações consistem numa alteração do comportamento social e emocional do doente, alterações de personalidade, ausência de autocrítica, ausência de capacidade de planeamento, apatia, indiferença e sintomatologia depressiva (Junqué, 2001).

As alterações de personalidade são as alterações mais bem documentadas em indivíduos que sofreram TCE, embora possam ser subtis e apenas denotadas por familiares e amigos.  Estas estão relacionadas com a localização das lesões encefálicas: as lesões frontais originam alterações ao nível da inibição, diminuição da motivação e da autoestima; por sua vez as lesões temporais originam agressividade e reações maníacas. Podem ainda surgir delírios, agitação, comportamento sexual desinibido, entre outros.

Alterações de Humor

A recuperação dos indivíduos que sofreram um TCE encontra-se afetada por múltiplos fatores. Muito para além da lesão cerebral verifica-se um impacto ao nível do humor, sendo que, este é dominado por ansiedade muito frequente (Lewis & Rosenberg, 1990 cit in. Klonoff, 2010). Estas alterações apresentam um impacto determinante na evolução do doente e devem ser alvo de intervenção rápida.

Numa fase inicial a ansiedade pode dever-se a reações catastróficas, ou seja, o indivíduo reconhece que já não é capaz de realizar determinadas tarefas de uma forma eficaz e neste momento a ansiedade instala-se. O quadro de ansiedade pode manter-se sobretudo quando o individuo se coloca questões tais como, “poderei voltar a trabalhar?”, “poderei voltar a conduzir?”, “como vou cuidar da minha família?” (Klonoff, 2010).

Segundo Bushc e Alpern a sintomatologia psicopatológica como depressão e ansiedade são comuns, independentemente da severidade do TCE, sendo habitualmente reativas à capacidade do doente compreender as suas incapacidades físicas, cognitivas e limitações sociais (Godfrey, Partridge et al 1993 cit in. Lezak, 2004).

Jorge e colaboradores (2004 cit in. Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009) constataram que 51,6% dos seus pacientes desenvolveram uma perturbação de humor dentro de um ano após a lesão, em comparação com 22% do grupo de controlo. Verificaram ainda que, as perturbações de ansiedade e o comportamento agressivo eram frequentes.

Vários estudos científicos referem que em indivíduos que sofreram um TCE, as taxas de perturbação de ansiedade são bastante elevadas, sendo que esta apresenta taxas de prevalência de 70% (Rao & Lyketsos, 2002 cit in. Moore, Terryberry-Spohr & Hope, 2006). Especificamente, as taxas de perturbação de ansiedade em indivíduos com TCE são de 3-28% para perturbação da ansiedade generalizada, 4-17% para perturbação de pânico, 1-10% para perturbação fóbica, 2-15% para perturbação obsessiva-compulsiva e 3-27% para perturbação de pós-stress traumático (Koponen et al., 2002, Hiott & Labbate, 2002, cit in. Moore, Terryberry-Spohr & Hope, 2006).

As manifestações mais frequentes de ansiedade incluem a indecisão, dúvida acerca de si mesmo, evitamento ou manifestação somática (Klonoff, 2010).

As circunstâncias em que um TCE ocorre são frequentemente violentas e colocam a vida do indivíduo em risco. Desta forma, dentro do espetro das perturbações de ansiedade a perturbação de pós-stress traumático é a mais esperada e verificada em indivíduos que apresentam a referida patologia (Moore, Terryberry-Spohr & Hope, 2006). Esta perturbação consiste na “reexperiência de um acontecimento extremamente traumático acompanhado por sintomas de ativação aumentada e pelo evitamento dos estímulos associados ao trauma” (DSM-IV, 2006).

A Perturbação Depressiva Major constitui-se como a psicopatologia mais frequente após a ocorrência do TCE. Esta surge em consequência da alteração drástica na vida do indivíduo, tal como, a alteração que se verifica ao nível da sua independência (Butler & Satz, 1988).

A Perturbação Depressiva Major apresenta uma taxa de prevalência de 33% a 42% no primeiro ano (Jorge et al., 1993b cit in. Fann, Hart & Schomer, 2009) e de 61% nos primeiros sete anos, após a ocorrência de um TCE (Hibbard et al., 1998 cit in. Fann, Hart & Schomer, 2009).

A Perturbação Depressiva Major apresenta-se como um problema de extrema relevância sobretudo devido aos seus efeitos na saúde, produtividade e qualidade de vida dos sujeitos. A referida psicopatologia está associada a uma diminuída adesão aos tratamentos médicos (DiMatteo et al, 2000 cit in. Fann, Hart & Schomer, 2009) e em indivíduos com alterações neurológicas, está associada a uma lenta recuperação cognitiva (Chen et al., 1996 cit in. Fann, Hart e Schomer, 2009). Indivíduos sobreviventes de TCE que apresentam Perturbação Depressiva Major durante um período superior a seis meses, evidenciam deterioração no seu funcionamento social e na realização das atividades de vida diárias (Bourdon et al., 1992 cit in. Fann, Harte & Schomer, 2009).

A qualidade de vida dos indivíduos sofre também um forte impacto após o TCE, com uma grande percentagem destes a sentir dificuldade em aceder a um emprego e na reintegração na comunidade, anos após a lesão. Um pobre funcionamento dos papéis sociais e integração na comunidade são sugeridos como preditores de baixa qualidade de vida (Man et al., 2004, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009).

Steadman-Pare e colaboradores (2001, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009) exploraram os fatores associados à qualidade de vida, 8 a 24 anos após o TCE em 274 pessoas. Os resultados revelaram que os fatores psicossociais, como a saúde mental, bem-estar e apoio social estavam fortemente relacionados com uma melhor qualidade de vida. Foi possível verificar, também, que os indivíduos que manifestaram depressão relataram menor qualidade de vida, e os que se encontravam num relacionamento relataram significativamente maior qualidade de vida do que aqueles que eram solteiros. Outros fatores associados a melhor qualidade de vida foram a capacidade de conviver com as pessoas, a capacidade de pagar as suas contas e a capacidade de se envolver em trabalho e lazer.

O funcionamento psicossocial (medido pela integração na comunidade, satisfação com a vida e apoio social) e a sua relação com a saúde mental (medida pela pós-concussão, stress pós-traumático e depressão) foram avaliados por Stalnacke (2007, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009). O estudo avaliou 163 pessoas TCE ligeiro, 3 anos após a lesão, e revelou que os indivíduos experimentaram baixos níveis de satisfação com a vida (46%), vocação (42%), lazer (43%) e saúde psicológica (60%). A depressão apresentou-se como a condição secundária mais frequente após a lesão e revelou uma associação significativa com a satisfação com a vida, isto é, o nível de satisfação com a vida diminui com o aumento da pontuação da depressão.

Risco de suicídio

Indivíduos vitimas de TCE apresentam também um maior risco de suicídio do que a população em geral (Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009). A literatura tem demonstrado evidência de que a ideação suicida é comum em pessoas com TCE (Kishi et al.,2001, Mainio, Kylionen, Viilo et al., 2007, Oquendo et al., 2004, Simpson, 2004, Simpson & Tate, 2002, 2007, cit in. Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009).

Um estudo que incluiu 172 indivíduos com TCE, revelou níveis significativos de falta de esperança (35%), ideação suicida (22%) e tentativas de suicídio (19%) (Simpson, 2004, cit in. Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009). Estes autores encontraram também uma prevalência de 1,86 tentativas de suicídio, num tempo médio de 2,5 anos após a lesão. Numa revisão da literatura, Simpson & Tate (2007 cit in. Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009) verificaram que indivíduos com TCE manifestavam 3 a 4 vezes maior risco de morte por suicídio do que a população em geral e apresentaram níveis elevados de tentativas de suicídio (18%) e ideação suicida clinicamente significativa (21-22%). Deste modo, a investigação afirma a necessidade de deteção e intervenção precoce para a pessoa e o apoio familiar para minimizar o risco de suicídio em pessoas com TCE (Kishi et al, 2001;. Oquendo et al, 2004; Simpson, 2004; Simpson & Tate, 2002, 2007, cit in. Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009).

Impacto nos Cuidadores

A literatura tem demonstrado que a ocorrência de um TCE tem impacto também nos cuidadores familiares de pessoas com esta lesão, que experienciam significativo stress, depressão, ansiedade e distress emocional (Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009).

Numa revisão dos efeitos do TCE sobre as relações conjugais, Liss e Willer (1990, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009) encontraram uma pressão adicional sobre o cônjuge e sobre as relações conjugais. Além disso, os cônjuges relataram sentimentos de ansiedade, isolamento e de perda.

Num outro estudo, com uma amostra de 20 homens e 11 mulheres com TCE e os seus cônjuges, Willer e colaboradores (1991, como citado por Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009) observaram problemas significativos nas relações conjugais e algumas das preocupações partilhadas por homens e mulheres com TCE foram a perda de autonomia, solidão e depressão.

Anderson e colaboradores (2002, cit in. Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009) avaliaram o impacto de problemas neuro-comportamentais de TCE sobre o funcionamento familiar e o bem-estar psicológico de 47 mulheres e 17 homens cônjuges/cuidadores. Os autores verificaram que os problemas neurocomportamentais afetaram negativamente o funcionamento familiar e causou distress psicológico nos cônjuges/cuidadores. Os elevados níveis de disfunção familiar são preocupantes, uma vez que o distress psicológico experienciado pode ter um impacto negativo na reabilitação da pessoa com TCE.

Todos estes fatores afetam a coesão familiar e capacidade dos cuidadores para cuidar da pessoa com TCE. Os familiares e cuidadores desempenham um papel fundamental no processo de reabilitação, pois estudos sugerem que o suporte social e as estratégias de coping da família podem mediar os efeitos da lesão cerebral. Deste modo, torna-se essencial ter em consideração que num processo de reabilitação, o paciente não é apenas a pessoa com TCE, devendo ser incluídos os familiares que a apoiam de forma contínua (Chan, Parmenter & Stancliffe, 2009).

Conclusão

Os dados até aqui referidos, demonstram que o impacto do TCE não se verifica apenas a um nível físico, mas também a nível psicológico, com consequências dolorosas para o indivíduo e para a família, durante mais tempo do que a própria lesão física.